terça-feira, dezembro 05, 2006

Catadores de Cidadania

Essa semana conversando com uma colega sobre uma problemática vivenciada por mim durante muito tempo por força da minha atividade profissional, e que sempre, e ainda me deixa indignado, resolvi rabiscar algumas linhas a respeito.

A questão dos catadores de lixo dos lixões. Trabalhei por dois anos no lixão de Aguazinha em Olinda e mais dois anos no lixão da Muribeca em Jaboatão dos Guararapes, região metropolitana do Recife, destino de todo o lixo produzido pelas cidades de Recife, Jaboatão e Moreno, algo em torno de 2.2 milhões de habitantes, perfazendo um total aproximado de 2.600 toneladas de lixo despejadas diariamente naquele local, 72 mil toneladas todos os meses. Além disso, viajando também por força do trabalho, conheci os maiores e principais lixões do Brasil, BR-040 em Belo Horizonte, Gramacho no Rio de Janeiro, Salvador, Aura em Belém, dentre vários outros.

E a convivência diária com a dura realidade vivenciada pelas hostes de sofredores que retiram desses lugares sua subsistência, transformou minha vida, me fazendo ver diversas coisas, senão quase tudo, de outra maneira.

Hoje estima-se que existam mais de 400.000 catadores sobrevivendo quase como animais, das sobras da sociedade, nos mais de 5.000 lixões espalhados pelo Brasil, dados antigos, pois pouco se estudou a respeito nos últimos anos, sendo o repositório mais confiável de informações a respeito, o Projeto Cidades do IBGE.

E aqui começa a provocação. Vamos fazer uma reflexão e pensar no quanto é injusta e cruel à sociedade brasileira com a maioria da sua população de desvalidos, sobrevivendo abaixo da linha de pobreza com menos de R$ 150,00 reais por mês, aí os números divergem, se fala em 35 milhões, alguns falam de 75 milhões de pobres, às vezes com uma frieza estatística como se por trás desses números não existissem pessoas.

Agora imaginemos, que se já é um enorme desafio sobreviver nessa injusta sociedade, violenta, onde falta educação, saúde, infra-estrutura, distribuição de renda, enfim, cidadania, o que dizer dos que sobrevivem dos restos dessa sociedade, dos que buscam o sustento do que essa podre sociedade considera podre, sobrevivendo daquilo que é colocado na condição de lixo, daquilo que não lhe presta, que é rejeito, daquilo que não mais lhe serve, podre sociedade.

É preciso abrir os olhos a essa grave e enorme questão. Temos vivendo nas nossas grandes, modernas e tecnológicas urbes, verdadeiras tribos, com costumes, hábitos, dialetos, valores éticos e morais absolutamente diferentes. Não exagero nas palavras nem os coloco, catadores, em situação humana menor, apenas constato o que vi e vivenciei. Aqueles que discordarem que busquem a experiência da convivência com esses grupos.

São inúmeras tribos de catadores de lixo e cidadania, que vivem inteiramente a margem da sociedade, não se enxergando, o que talvez seja o mais grave, como parte da mesma, pois na lógica dessas tribos, direitos a educação, saúde, água tratada, documentação, saneamento, moradia, não são direitos para eles, são para os outros, são coisas abstratas, sequer sonhos.

Sei que a maioria do povo brasileiro, aí voltamos para os números, 35 ou 75 milhões de pobres, também sonham esses sonhos, mas ao menos sonham, e dessas pessoas, junto com a cidadania direito de todo brasileiro, roubaram até o direito de sonhar, pois tudo isso para eles, cidadania e sonhos, é para os brasileiros, outro povo, estranho, com outras lógicas, valores e padrões comportamentais.

Até quando vamos nos calar e continuar cegos a isso. Reconheço que algo tem sido feito. Conheço dezenas de projetos, na sua maioria de instituições da sociedade civil, que se mostra indignada com os cenários dantescos tão bem retratados pelo artista Sebastião Salgado, que com sua capacidade impar registrou em fotografias essa realidade, mas é preciso muito mais.

Precisamos reconhecer as iniciativas como as do Fórum Lixo e Cidadania, do qual tive o orgulho de fazer parte nos primórdios de sua constituição, com o apoio imprescindível do UNICEF, mas há que ser feito um mutirão da sociedade capitaneado pelo poder púbico, que estabeleça políticas públicas inclusivas para esses irmãos jogados literalmente no lixo pelo status quo dominante.

Soma-se a isso a questão ambiental. O aspecto da economia ambiental que a eliminação desses infernos proporcionaria para a sociedade, uma vez que a implementação através de políticas públicas governamentais, de teorias como as dos 4Rs, Repensar, Reduzir, Reutilizar e Reciclar, demandaria menos insumos e menor exploração dos recursos naturais.

Por isso conclamo ! Industriais, empresários, empreendedores de visão, abram os olhos, pois tudo isso pode ser uma enorme e inesgotável fonte de geração de lucro, pois todos geramos, eu, você, os mais de 180 milhões de brasileiros, todos os dias, quase um quilo de “lixo”, e é possível auferir grandes lucros desse inesgotável negócio, ancorado nos princípios da sustentabilidade.

Outra questão é que precisamos ficar atentos ao exemplo de Olinda, e de inúmeras outras cidades brasileiras, pois logo não vai mais haver espaço físico para a construção de novos aterros. E aí ? Onde vamos criar mais cemitérios de riqueza, que é como eu vejo os aterros e lixões.

Para concluir, apesar da relevância da questão ambiental, bandeira que abracei desde sempre, e que a tragédia da falta de políticas públicas para o setor vem perpetrando ao patrimônio natural brasileiro, comprometendo a qualidade de vida das futuras gerações, para mim a questão mais grave e que se faz mais urgente, é a do homem, é a do catador, é a das milhares de crianças que tem roubadas suas infâncias e negados seus futuros.

Não diria que a missão é resgatar a cidadania dessas pessoas, pois para mim é muito claro que o desafio é maior, é necessário um processo de instituição dos conceitos de cidadãos para essas pessoas, porque a eles tudo foi sempre negado, e aí então, em um mutirão que mobilize governos e sociedade, estabeleceríamos através de políticas públicas governamentais, com a participação do setor produtivo, um processo real de inserção desses irmãos, fazendo com que se vejam como gente, como brasileiros, iguais mesmo que pobres, como os 35 ou 75 milhões das estatísticas, mas gente, como a gente.

Com a palavra Manuel Bandeira

“Vi ontem um bicho,
Na imundície do pátio,
Catando comida entre detritos,
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava,
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho,meu Deus, era um homem”

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