quarta-feira, novembro 29, 2006

Onde é a África ?

Essa semana a convite de alguns amigos, fui a um Afoxé lá no Alto da Sé em Olinda. Apesar de ser cristão convicto e Kardecista desde berço, tenho enorme respeito, admiração e alguma compreensão das religiões afro-brasileiras.

Já havia ido a muitos outros ensaios de Afoxés, e também como admirador de todas as manifestações culturais e religiosas de nosso povo, também já havia freqüentado rituais afros dos mais diversos, maracatus, terreiros de candomblé, rituais de jurema, até a um casamento de umbanda tive oportunidade de participar. E foram todas vivências inesquecíveis tanto pela beleza do sincretismo, dos ritos, ornamentos, coreografias e principalmente pelo bater contagiante dos tambores que marcam os rituais, envolvendo você de tal forma que é impossível não se deixar envolver e simplesmente se ver parte daquilo, de uma forma nata. Acho que como dizem, está no nosso sangue plural, com um forte tempero africano.

E fica aqui o convite, para os que ainda não tiveram a oportunidade do contato com essas manifestações culturais e religiosas, que o façam, pois certamente muito vai acrescer em seu entendimento a respeito do processo de formação de nosso povo e nossa cultura.

Mas se vocês voltarem algumas linhas acima, talvez sintam falta, os mais observadores, que exaltei diversos aspectos dos rituais afro-brasileiros, menos o que talvez seja o mais belo de todos os seus componentes, que são os cânticos, os belos cânticos em Nagô e Ioruba, que são a base e o fio condutor de todas essas manifestações religiosas. Porque essa é exatamente a provocação que quero trazer com o texto de hoje.

Como falei, não sou profundo conhecedor da cultura afro, mas desde o primeiro contato que tive em minhas andanças aqui pela terrinha, e em várias viagens que fiz ao Maranhão, Alagoas, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais, e Salvador, célula mater do candomblé e de todas as manifestações oriundas da Mãe África, venho me perguntando, e sábado em especial, quando estava lá no Afoxé, inebriado pela batida dos tambores e agogôs, reafirmei a pergunta.

Porque todos, ou quase todos os cânticos entoados nos rituais são de lamentos, porque todos ou quase todos os cânticos remetem ao passado do africano trazido ao Brasil acorrentado nos porões dos navios, porque todos ou quase todos os cânticos falam dos açoites sofridos pelos nossos irmãos nos pelourinhos, da saudade deixada pelos que conseguiram escapar dos “caçadores de escravos” separando famílias e comunidades na África do passado ?

Não quero aqui de forma alguma relegar ao esquecimento com essa provocação o passado de luta e resistência dos nossos ancestrais africanos. Mas quero lembrar que é preciso olhar para o passado com vistas à construção de um outro presente, melhor, e de um futuro de sonho, sonho de igualdade e justiça, aqui e na terra mãe.

Outro aspecto que me faz refletir é que além de tudo de abominável sofrido pelos ancestrais africanos, havia também certamente muito de belo, que pouco escuto nos cânticos entoados nos terreiros de candomblé, não creio que no vocábulo Iorubá não existam palavras belas, doces, que falem de amor, de sonhos, de paz, de fraternidade, de alegria.

Porque pouco se exalta o lindo passado dos ancestrais africanos/brasileiros que resistiram, e a custa de muitas vidas conquistaram algo que sempre pertenceu a eles, presente de Deus, Deus dos cristãos, Deus dos africanos, Deus dos Budistas, Deus de todos nós, a liberdade de ser vivente, iguais a todos em tudo ?

E o que me incomoda ainda mais, é a pergunta que deixo para os pensadores do assunto. Onde e como está a África hoje ? Ainda se fala Ioruba e nagô, só que o que hoje se fala nesses dialetos, que são apenas dois, dos milhares existentes na Mãe África, não versa sobre cortes de reis e rainhas africanas, de açoites nos pelourinhos, das senzalas, dos castigos infringidos pelos capitães do mato, dos sofrimentos dos porões dos navios. Hoje se fala nesses dialetos a respeito de outras realidades, tão, ou talvez até mais dura e cruel.


Onde estão hoje os Orixás ancestrais invocados e cultuados nos rituais afro-brasileiros, terão se mudado para o Brasil vindo nos porões dos navios negreiros ? Ou estarão vivos na áfrica de hoje ? Terão cessado os sofrimentos dos que vivem hoje do outro lado do atlântico ?

Hoje não há mais, graças à força e resistência dos nossos ancestrais e ao processo do progresso natural da “humanidade”, ainda que muito lento, o açoite do chicote na mão dos coronéis e dos senhores de escravos aqui no Brasil, mas lá, do outro lado do Atlântico, há o açoite da AIDS, que mata todos os dias mais de 6.000 pessoas entre adultos e crianças. Há o açoite da expropriação das riquezas materiais do mais sofrido dos continentes, onde "se trocam vidas por diamantes". Há o açoite da fome que mata milhares de pessoas todos os dias de inanição. Há o açoite das empresas transnacionais e das mega corporações que continuam a perpetrar o processo de escravidão daquele povo, fomentando guerras que se transformam em genocídios. Recomendo a quem ainda não assistiu, o filme Senhor da Guerra com Nicolas Cage.

E fica a questão para os conhecedores e combativos companheiros do Movimento Negro e dos movimentos religiosos afro-brasileiros. Porque não se lamentar nos seus cânticos pelo presente, sem claro esquecer o passado... Porque não se espelhar no passado para combater e estabelecer a resistência do presente, não só aqui no Brasil do preconceito racial e social, mas sobretudo lá na África, onde ainda se faz presente o chicote na mão dos sem alma e coração que continuam a enxergar pessoas como mercadorias, vendendo e comprando a dignidade e a cidadania daquele povo, nosso irmão ?

Ou será que a África, berço de todos nós, não é mais problema nosso. Será que o quinhão que nos cabia de resistir e combater veio junto com nossos primeiros irmãos negros nos navios negreiros. Onde vivem hoje nossos orixás ? Onde vivem nossos ancestrais ? Apenas no passado de resistência do negro brasileiro ?

Tenham certeza que hoje existem milhares de Zumbis dos Palmares lá na terra mãe, sendo açoitados pela injustiça e pela expropriação de suas riquezas materiais e imateriais. E nós, que tanto fizemos e temos feito no movimento de resistência e luta contra o preconceito racial, de afirmação de nossa cidadania plural, que responsabilidade temos com esse processo ?

Talvez não possamos interferir muito daqui desse lado do Atlântico, na quebra desse processo de escravidão que ainda se encontra o povo africano, mas podemos ao menos nos indignar e entoar cânticos com novos lamentos e exaltações, que instiguem a resistência e a luta do povo africano, e num fluxo contrário ao feito pelas caravelas do passado, talvez possamos mandar para lá, nossa Terra Mãe, não mais em porões de navios, mas através da Internet, dos meios de comunicação, dos trabalhos acadêmicos, e de ações efetivas, a força e a resistência que descobrimos dentro de nós, vindas de lá, forjadas nas lutas de nossos Zumbis e Zés do Patrocínio, pelos Orixás e ancestrais do passado.

Com a palavra meus companheiros do Movimento Negro.

Saudações Fraternas e ecológicas.

Ricardo Sérgio

Um comentário:

Anônimo disse...

Adorei os seus questionamentos e que bom seria se todos os compositores os vissem,mas como eu não sou mulher de ficar no "que bom seria",vou alfinetar alguns compositores que conheço para ver se no carnaval que se aproxima eu já acompanho, com meu alabê,uma música que fale do que você sentiu falta.Acho que também não vai fazer mal se eu providenciar um encantamentozinho para realizar o seu(ou seus)desejos!Beijo na sua alma.Marcella Trigueiro(A Bruxa).